Saturday, March 8, 2008

João Ribeiro Pintor




Nem por um momento a pintura de João Ribeiro é uma pintura-janela. Ela é sempre pintura-pintura, acumulação – em sentido literal – de pinturas, sucessivos momentos de implicância que vão saturando o espaço visual de informação gráfica – mesclas de cor, pinceladas e contrapinceladas, texturas e patines, relações forma-fundo – até que, como acontece nestas últimas pinturas, determinadas configurações assumem o protagonismo de signos, normalmente por via da criação de sombreados e outras estratégias, como a posição centrada relativamente ao campo da tela. Tais signos destacam-se do fundo e tornam-se então palavra central de uma narrativa que cumpre ao espectador investigar – e várias pistas são relativamente óbvias.

Claro que estas pinturas não são desenhos com fundos pictóricos, porque cada centímetro da tela tem um investimento de mão, de tempo e de sentido, que convoca a obra, no limite, para um duplo estatuto: ser toda ela pintura, tanto no aparente tema central, como no aparente tema-fundo. Esta dupla – esquizofrénica – vocação afasta de João Ribeiro os que procuram mantras de texturas e cores exclusivamente abstractas, a condizer com os sofás; e também os que exigiriam à obra uma maior inequivocidade dos motivos culturais, maior codificação. Imersas na convicção do criador, ambas as tendências, uma para o silêncio e outra para a comunicação, degladiam-se e tornam as pinturas afinal mais contemporâneas e pós-modernas – no bom sentido – que o que se poderia pensar. Mas não é cínica esta teimosia no pintar de João Ribeiro; é natural, como é metódica a investigação sobre as formas, as opções expositivas, o imaginário (recorrente de pinturas para pinturas). E esta naturalidade revela-se constância, não tanto por se organizar em séries reconhecíveis, mas sobretudo por manifestar a persistência do seu autor em partilhar a sua relação crítica e desconstrutiva com as formas adquiridas da Cultura, o que faz de cada exposição um patamar decisivo num processo de autoconhecimtno (da parte do Pintor) e uma demarcação pública de nós de significado na esfera da Cultura, entendida como nobre plataforma de encontros proporcionados pela elite dos deuses: os artistas.

Deuses de jardim, neste contexto, e no momento que João Ribeiro atravessa, carrega de beleza e ironia desencantadas uma leitura sui-generis da sociedade e da política. Os escorridos aí estão: lágrimas? Raiva? Certamente um gesto bad, pequena radicalidade do pintor-maduro-que-não-quer-deixar-de-ser-ele-próprio. Escorridos e aguados, em contradição libertária e quasi-exuberante metonímia do íntimo indizível, são um aspecto da resposta do João ao calculismo da Arte Contemporânea, que paradoxalmente até podem relançá-lo nos territórios florescentes da Arte do Mercado.

Serão os deuses de jardim – e os deuses de Jardim... – que levam estas palavras para o vocabulário botânico? Ou é a própria essência deste corpo de trabalho, investido de gesto, espírito e cor, que de forma natural (!) nos levam a repensar o nosso lugar no mundo e na sociedade? Mas se o Poder é um tema-chave na abordagem desta pintura, trata-se não somente da constatação e crítica do poder dos pequenos ditadores, quotidianos e burocratas, mas o Elogio do Poder Criador, a moral que borra a pintura, alimentando, senão inaugurando, um Éden de símbolos.


O resto é a música que se ouve no ateliê. Free-jazz. O mesmo imparável ritmo de trabalho e imersão total no som da pintura, que se espera se faça ouvir insolentemente no espaço concentrado da Biblioteca, a si mesmo enquanto arte e a si mesmo enquanto vida microscópica, e afinal soberana, na sua ética e na sua orgânica. Fulgurante Vida de animais e plantas no terreno sincrético do Conhecimento.

TXT para exposição Deuses de Jardim na Biblioteca da Universidade Nova de Lisboa, Monte de Caparica, Maio a Julho 2007