Saturday, March 8, 2008

Javier Núñez Gasco. O ready-made institucional mete medo?



A prática artística de Javier de Nuñez Gasco investiga empiricamente, através de processos performativos, as patologias do nosso meio social. Sentindo-se e responsável pela consciência colectiva, cuja exploração integral, disfarçada de ironia, é objecto da sua vida e da sua obra, Gasco acede à sublimação do facto artístico, uma religião unipessoal, nihilismo consumado. Doce combustão do instersíicio. A Arte terá sempre a sua sombra, mas esta é em Gasco a desmultiplicada plasticidade do social.

Trabalhos recentes como as Resting Pieces são extraordinários modelos de criação, produção, fruição e gestão artística, mas aqui se dá conta, por ora, da peça realizada para a Luzboa em 2007: Misérias

Enquanto trabalho-em-progresso, Misérias Ilimitadas consiste na constituição de uma empresa, com o nome de Misérias Ilimitadas, Lda. No âmbito da Luzboa 2006, a empresa contratou pessoas a partir de um anúncio de imprensa publicado em vários jornais de edição nacional. Uma funcionária recebeu os mais de 300 telefonemas e, em conjunto com o artista, desenvolveram uma pré-selecção solicitando aos candidatos: Nome, Idade, Telefone, Motivação e Ocupação. Uma vez realizada esta pré-selecção, marcou-se uma data com os dezoito candidatos para uma entrevista na rua – Largio do Calhariz, junto à fachada da Companhia de Seguros Fidelidade, numa área com 3m2 que o artista demarcou com fita adesiva metalizada. Nessa entrevista, Cláudia Maranho [sócia, secretária e directora de recursos humanos], para além de recolher a informação relativa a cada candidato [BI, fotografia tipo-passe, CV, fotocópias do BI, n.º de contribuinte] forneceu a cada um deles um boletim de inscrição, um questionário com 14 perguntas e uma declaração visando a cedência de direitos de imagem; nessa mesma entrevista, um fotógrafo contratado pela empresa realizou uma fotografia com todos os candidatos sentados no solo, costas contra a parede de um prédio urbano, em posição de pedir esmola. Com todo este material, o artista escolheu três pessoas que foram finalmente contratadas pela Misérias Ilimitadas, Lda.: Lda. André Magalhães (20), Ricardo Guy (20) e Bruno Gomes (30).
No dia seguinte, Núñez Gascou marcou outra entrevista com os seleccionados para lhes explicar em que consistia o projecto, ministrar um workshop na rua e assinar um contrato com cada um. O trabalho consistiria em pedir esmola, junto de uma mala de couro negro e um cartaz em que foram montadas frases em néon vermelho, tipicamente utilizadas por mendigos. Estes trabalhadores desenvolveram a sua função no quadro de um contrato com a duração de dez dias, prevendo 6h de trabalho diárias, com intervalo para jantar, segurança social e o pagamento dos devidos impostos.
Durante os dez dias da Luzboa, Misérias Ilimitadas, Lda. foi apresentada em diversos pontos do percurso e envolvente, procurando tirar o melhor partido dos diferentes fluxos urbanos na área e das condições de acesso às caixas de alimentação eléctrica da rede pública, necessárias para iluminar os néons. Qaundo abordados pelso transeuntes, os mendigos tinham a obrigação de esclarecer a sua situação enquanto empregados da empresa e as suas funções no seio do projecto: pedir esmola e promover a caridade.
Javier Núñez Gasco nasceu em 1971, em Salamanca. A sua prática artística investiga empiricamente, através de processos performativos, as patologias do meio social. Núñez Gasco sente-se responsável pela consciência colectiva, cuja exploração integral, disfarçada de ironia, é o objecto da sua vida e da sua obra.

Outra arte pública, ou a estátua de ferro a arder

Javi apresentou à Luzboa uma peça complexa ao nível da sua produção e das suas virtualidades simbólicas. Misérias revelou-se desde o início não apenas uma obra, mas uma meta-obra, excitando o debate nas margens do que se convenciona o campo da arte. Como no espectáculo da Gulbenkian, tratou-se de um trabalho com regras explícitas e uma discurso luminosamente evidente.

Em outras obras, Núñez Gasco tem colocado em jogo a sua imagem, a sua saúde, a sua identidade, o seu corpo, o seu equilíbrio, o seu ser. São obras que interrogam limites por via de uma disponibilidade para a imolação no palco social. Mas em Misérias Ilimitadas, Lda, Núñez Gasco partiu da proposta exterior de uma metáfora operativa, a Luz, para elaborar uma peça-estrutura, com capacidade estratégica ao nível da sua interrelação com os domínios não apenas da Arte, mas dos Media ou do mero quotidiano da Baixa de uma Capital Europeia. Essa faceta explosiva da peça interrogou formal e informalmente, física e retoricamente, limites e condicionantes da vida em sociedade, numa operação que teria por resultado, para muitos, o típico mal-estar quando somos interrogados no campo da ética, com todas as suas implicações, nomeadamente comportamentais e jurídicas.

Se o trabalho de Núñez Gasco sintetiza um modelo de reflexão individual projectado em múltiplas citações de habitus sociais – com destaque para o ‘mundo da arte’ que subtil mas demolidoramente manipula em nome de um projecto de vida que da Arte retira tudo e nada – não deixa de ser ele próprio a colocação em marcha de um conjunto de dispositivos que releva de uma ciência [do] social, radicalmente experimental.

Núñez Gasco propõe uma arte intersticial nas estratégias de ocupação dos espaços, difusa nas consequências comunicacionais, mas absolutamente controlada nos seus limites e estruturas formais [eis o traço genérico dos maiores artistas, pelo menos daqueles cujo trabalho é simultaneamente um modelo em aberto, transparente e acessível a qualquer interessado]. Por isso é quase irrelevante discutir-se a dimensão estritamente estética – performance, happening, instalação, denúncia, provocação, paródia…? – e muito mais interessante inferir os traços de uma táctica de sobrevivência moral num mundo absurdo e alienado. Não é desta que voltarei a Kafka, ainda que fosse ocasião fácil; apenas porque importa mais, nos limites deste texto, explicitar como uma obra que é profundamente dependente dos media – essa hidra do ‘baixo’– é ao mesmo tempo um território de liberdade, consciência e autonomia. Não era preciso mais para considerar esta a arte possível e capaz para o tempo-écran que nos cerca.


Para o campo cultural, embevecido na sua taste-trip egocêntrica e pequeno-burguesa, terá passado despercebido que, no dia em que a Luzboa era chamada de capa nos principais jornais de referência, os ‘mendigos profissionais’ de Núñez Gasco faziam o pleno das contracapas dos tablóides e jornais sensacionalistas. Com direito, nos dias seguintes, a um bom número de conversas cruzadas na blogosfera. Réussite de uma cedência à linguagem media? De todo: tão só a eficaz manipulação de uma linguagem plástica como poucas – a retórica – para expor um convincente mecanismo de debate sobre aspectos tabu para a opinião pública.

Acusação possível, a mesma de sempre: a Arte solucionou ou sequer apontou soluções para alguns dos problemas levantantados [e não estou a falar dos mais evidentes]? Se o retorno crítico ao situacionismo parece ser um traço da contemporaneidade, tiene mucho de metafísica barata, una suerte de cóctel en el que el marxismo es, ante todo, una pose ‚correcta‘, cuando la mueca cínica domina todas las actitudes teóricas. Só que… algumas obras evitam o logro do chamamento – o ‚vem‘ que Derrida outorga à Desconstrução ou que subjaz a muita arte participativa – e conseguem ultrapassar a 'pose‘ ou bandeira para se converterem em cerimónias, rituais geradores de experiência, pulverizando a rotina estética, esa hibernación pavorosa en la que están localizadas muchas obras. Obras como esta de Núñez Gasco celebram portanto o Espaço Público, enquanto território urbano e conceito existencial. Porém, num registo que não o da mera teatralização do social, mas de concentração em fluxo, em aberto e em progresso, da própria plasticidade desse social. Recusam o conforto do proscénio [da Arte], dispõem-se como reformulação contemporânea do Realismo. Neste caso, no quadro do que Javier denomina 'ready made institucional‘.


Para a Luzboa, foi acima de tudo uma experiência directa do urbano e das suas consequências, um exercício de contacto com o Outro [mais que o Outro habitual da relação classe dominante / público cultural, não deixo de destacar a importância de inúmeros transeuntes terem tido contacto com o Outro da Arte que foi o próprio Núñez Gasco em acção]. Uma iluminação pois, fugaz, frágil, contestada e inquirida a partir de várias esferas do poder executivo da cidade, mas recebida com absoluto fair-play e curiosidade natural por parte de quem mais interessava atingir: o espectador comum, próximo, em relação.

A essência deste trabalho profundamente humano foi surpreendidada por Malek Abbou numa das suas crónicas: Para além da mensagem que manifesta, o projecto de Núñez Gasco é um combate sempre activo, uma guerrilha táctica contra o peso ubíquo de uma máquina universal de triturar o humano. Mas é Delfim Sardo que nos ajuda a indagar o modo estritamente artístico por via do qual o artista leva o seu projecto avante: É uma constante do teu trabalho adoptar essa postura de te situares ‘do outro lado’, mostrando o reverso da moeda […]? Intrusão virulenta, nas palavras do próprio Gasco, para quem a moeda, afinal, ainda que caindo ao solo, é como se não parasse de rodopiar…

Se a ironia e a dimensão lúdica desta obra prevalecessem, não teria a mesma, quanto a mim, mais interesse que qualquer excrecência da estética do dejecto e da irrisão que povoa inúmeras colecções, museus e exposições. Mas aqui o absurdo é como em Kafka, actuante. Para Javier Núñez Gasco lo artístico se ha convertido en un juego con el que conjurar ese panorama de estímulos inconexos y discontinuos que nos mantienen aferrados a la promesa de premios sabiamente dosificados por el poder adquisitivo. La estadística del éxito convierte esas promesas difundidas para todos en mentiras para la mayoría. Lo artístico se vuelve así una ludopatía invertida, una consciencia crítica que revierte un proceso de reflejos condicionados para afirmarse en la ironía. […] Javier Núñez Gasco ensaya haí una respuesta estética al enorme potencial de estímulos con que nuestro mundo reviste sus ofertas y sus promesas siempre postergadas. Como que indexando comportamentos , o Artista – reencarnação de palhaço-ilusionista-bobo-santo – mapeia-nos incongruências e logros que subsistem não apenas no quotidiano mas na própria filosofia e essência da nossa urbanidade, brutais na sua inevitável banalidade.

A ideologia, aqui, é liminarmente ultrapassada, assim parece; mas o que alguns entendem como religião unipessoal [ainda Trigueros], prefiro ver como contributo único e indivisível, missão portanto, Missão. Daí fazer sentido evocarmos uma obra como Autorretrato, de 2005 . Essa obra que pode ser várias vezes repetida na sua unicidade, em diversos lugares, em diferentes condições da existência, em acto de imolação plenamente auto-justificado porque espiritual. Kafka usava o termo ‘indestrutível’, tão mais apropriado à figura e ao desígnio de Javi.

Em suma, há artistas que tudo o que tocam transformam em resíduo – ver a profunda crítica da Arte Dejectual empreendida por Jean Clair em De Immundo . Há artistas que tudo o que tocam iluminam, e neste caso, também ‘incendeiam’. Há os consumidos e os que por nós, em nós, se consomem. Conferir a luz-em-fluxo tal como enunciada por Christine Buci-Glucksmann em Esthétique de l’Éphémère.


Porque artista em contínua combustão, programar Núñez Gasco numa Bienal é no mínimo um risco; temos medo dele. Como noutro tempo tive oportunidade de ver em Francisco Tropa , sabemos porém, ao mesmo tempo, que cada gesto virá enformado de uma gravidade genial, e de uma graça veloz. Gravity and grace, fugidias como o tempo, mas ali, prontas para um contacto directo com os fruidores casuais: Como artista, quiero dar a mis obras la apertura suficiente para que sea el espectador quien emita el veredicto final. Renuncio voluntaria y conscientemente al papel de juez privilegiado. Es más, siempre espero que las diversas lecturas de cada espectador enriquezcan y superen mis propias expectativas. Personalmente, me siento totalmente inmerso en esas realidades y por eso mismo no deseo valorarlas. Soy, no sólo cómplice sino protagonista, es decir, soy el propio conflicto.

[…]

De obra em obra , num continuum de acções interligadas, o projecto artístico de Núñez Gasco encontrou na Luzboa uma das suas expressões mais felizes, porque mais objectivamente ancorada num real de proximidade, em espaços públicos frequentados por milhares de pessoas que interagiram com a obra aos mais diversos níveis e com consequências absolutamente díspares. Também uma das expressões mais felizes porque concretizou algumas premissas do evento que as obras mais visuais, em sentido estrito, não poderiam empreender. Refiro-me à capacidade de ser simultaneamente hiper-realista e abstracto ; de, por via da Luz, tanto em sentido material como figurado, comunicar e ser Arte, em simultâneo e sem fragilizar qualquer destes pólos da criação contemporânea.

Afirma Gasco: Digamos que coloco interruptores, que expongo ideas para que cada persona saque sus conclusiones. El espectador forma parte de la obra, la completa. Espero eu que o leitor complete, por sua vez, o desafio deste texto: o de procurar surpreender nos Gascos deste mundo, e são poucos, o modelo confrontacional para uma verdadeira ‘arte do espaço público’, esplendor [e miséria?…] da indeterminação e da utopia em construção.


Ver mais em Javier Nuñez Gasco, livro-catálogo sobre Javier Nuñes Gasco, DA2 Domus Artium 2002, Salamanca, 2007. Contém a citada entrevista com Delfim Sardo.

As fotos aqui publicadas são da autoria de Daniel Malhão.

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